Hannah Arendt: As Origens do Totalitarismo

Guilherme Paiva Seidel
11 min readJun 19, 2024

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Arendt em 1958 aos 52 anos

1. As Origens do Totalitarismo

Trata-se de uma obra seminal da filósofa política Hannah Arendt, publicada pela primeira vez em 1951. Este trabalho monumental é dividido em três partes principais: “Antissemitismo”, “Imperialismo” e “Totalitarismo”, e explora as raízes históricas, sociais e políticas do totalitarismo, com ênfase nos regimes nazista e stalinista. Em nosso material e curso, daremos destaque para a terceira seção do livro.

2. As Correntes Anti-Burguesas e a Era das Massas

Após a Primeira Guerra Mundial, a Europa mergulhou em uma crise econômica profunda, exacerbando o descontentamento social e preparando o terreno para a ascensão de movimentos anti-burgueses. A sociedade passou por um processo de individualização e atomização, onde a coesão social se desfez e as responsabilidades coletivas foram substituídas por um sentimento generalizado de frustração. Esse cenário deu origem à chamada psicologia de massas, onde, nas palavras de Cecil Rhodes, os indivíduos começaram a “raciocinar em termos de continentes e sentir em termos de séculos”.

Essas transformações abruptas visavam a implosão do sistema de classes existente — operária, camponesa e burocrática — resultando na formação de uma massa amorfa e inerte. O ressentimento e a frustração acumulados se tornaram ferramentas poderosas, concentradas em elementos que Arendt denominou como “ralé”. Estes seriam os sujeitos que compuseram os “quadros” dos partidos totalitários, veremos o conceito de ralé em detalhes mais adiante.

2.1 O Terror Totalitário

Ao contrário do terror ditatorial, que se limita a ameaçar adversários políticos específicos, o terror totalitário visa a massa inteira sem distinções. Nos regimes totalitários, não há racionalidade ou limites claros; até mesmo os membros do partido e da organização totalitária podem ser atingidos por expurgos contínuos e imprevisíveis. Esses expurgos não são meros eventos isolados, mas sim uma prática governamental sistemática.

Arendt ilustra esse ponto com o exemplo do Holodomor, a fome artificial provocada na Ucrânia em 1933, que resultou na morte de milhões de pessoas. Os expurgos e a fome deliberada são usados como estratégias para promover a atomização social e impor um estado de “solidão absoluta”, um conceito fundamental em sua análise do totalitarismo.

Em um regime totalitário, a solidão absoluta significa a desintegração completa dos laços sociais e da confiança entre indivíduos, criando um ambiente onde a vigilância e a desconfiança permeiam todas as esferas da vida. Essa solidão facilita a dominação total, pois um povo isolado e aterrorizado é mais fácil de controlar e menos capaz de resistir:

“A qualidade inalienável de todo bolchevista nas condições atuais deve ser a capacidade de reconhecer um inimigo do partido” (Frase de Stalin, Joseph em FAINSOD, Smolensk under Soviet rule, (p,57–8)

Hannah Arendt mostra como o totalitarismo não é apenas uma simples questão de opressão política, mas uma transformação profunda da sociedade, onde o terror e a manipulação psicológica são usados para destruir a individualidade e a coesão social, deixando a população vulnerável e submissa ao poder absoluto do Partido.

2.2 A Lealdade Total

A base psicológica do domínio totalitário reside na ausência de laços sociais e no isolamento dos indivíduos, que são mergulhados em um clima de conspiração e desconfiança. Este ambiente culmina no domínio intra-ideológico do sujeito, onde a lealdade ao líder se torna absoluta e inquestionável. É essa lealdade total que dá origem ao “sujeito totalitário”, estabelecendo um princípio de identidade entre o governante e o governado, e entre o pensar e o agir.

Neste contexto, as ordens parecem emanar de dentro do próprio sujeito, como se ele próprio conhecesse e obedecesse automaticamente aos desejos do líder. Esta simbiose fortalece e se torna o princípio central do conceito de movimento totalitário, onde a massa parece atuar como o emissário do líder, expressando sua vontade sem necessidade de comunicação explícita. A ordem emanada parece vir de dentro do próprio indivíduo, reforçando e centralizando o conceito de movimento. A massa de seguidores aparenta compreender e antecipar os desejos do líder, atuando como seus emissários e manifestando sua vontade sem sequer ouvi-lo diretamente. Adolf Hitler articulou esse princípio de forma explícita:

“Tudo o que vocês são, o são através de mim, tudo o que eu sou, sou somente através de vocês.” Hitler, Adolf em Arendt, 2006a, p. 375

Esta declaração encapsula a fusão completa entre o líder e a massa, onde a identidade e a ação do sujeito totalitário são inteiramente derivadas de sua relação com o líder.

A lealdade total não é apenas obediência cega; é uma internalização dos valores e objetivos do regime, criando uma unidade monolítica entre o líder e os seguidores. Este vínculo transforma a massa em um instrumento eficaz do regime, capaz de antecipar e executar a vontade do líder de forma autônoma, consolidando ainda mais o poder totalitário. A base psicológica do domínio totalitário reside na ausência de laços sociais, no isolamento dos indivíduos e na perpetuação de um clima conspiracionista. Essa dinâmica de lealdade e identidade compartilhada é um dos pilares centrais do totalitarismo, possibilitando um controle absoluto sobre a sociedade e a manutenção do poder através da manipulação psicológica e da aniquilação dos laços sociais tradicionais.

2.3 A Ralé

A violência e a tomada de poder não são fins em si, mas etapas no caminho para o domínio total. Segundo Arendt, o principal grupo social seduzido pelo apelo da violência é a “Ralé”. Este não é um grupo pequeno ou reduzido, mas sim um subproduto da burguesia, do proletariado e de todas as classes. Representa um excesso inútil das classes que busca um acesso à história, inserindo-se na memória dos povos através da liderança de um gênio ou tornando-se um líder, autonomamente ou por meio de outro líder.

Este grupo caracteriza-se por um “Expressionismo Político”, expressando ressentimento, frustração e ódio pela civilização moderna e pela política corrente. Sua “trans-destruição” reflete um desprezo e aversão pela vida falsa da sociedade burguesa e pela respeitabilidade. Seu modus operandi inclui cinismo, terrorismo e violência. A ralé compõe a base do totalitarismo e, por meio de uma atmosfera específica, rejeita a dupla moralidade burguesa (público-privado).

A ralé floresce através do anti-humanismo, anti-liberalismo, anti-individualismo, anti-cultura, e favorecimento da violência, poder, crueldade e fetichismo da guerra, especialmente na Primeira Guerra Mundial, no caso da Alemanha Nazista. A resposta para essas frustrações é o expressionismo já citado, a trans-destruição do corpo social. A crueldade é vista como verdade, um desprezo pela respeitabilidade como uma verdade cínica, embora mentirosa dos fatos. A morte do privado surge neste contexto; a ralé é parte do movimento, diferenciando-se do “homem de massa” por valorizar menos a vida privada. Na Alemanha Nazista, dizia-se: “A única pessoa que ainda é um indivíduo privado na Alemanha é alguém que esteja dormindo.”

A ralé compõe os quadros do partido, os ativistas e militantes do movimento totalitário, e são os comissários do líder, em uma relação simbiótica que lhes permite falar por ele e ele por eles. Este é o “princípio do líder”, conceito amplamente documentado por Arendt que veremos mais à frente. A ralé se realiza pelo “sacrifício da ideia”, sendo a base de uma lealdade total ao regime, com indivíduos massificados e esvaziados de sentido buscando um pretexto para inserir-se na história, mesmo que seu sacrifício seja necessário para tanto.

2.4 A Propaganda Totalitária: Morte dos Critérios de Verdade

Caracteriza-se pela doutrinação do terror e fortalecimento do domínio interno por meio de uma cortina de ferro, protegendo a narrativa e controlando o conhecimento do mundo exterior. Isso permite uma profunda distorção do real, criando uma realidade narrada tão coerente com a dimensão interna do regime que a verdade e a propaganda tornam-se indistinguíveis. O controle do real e o revisionismo histórico, o isolamento do mundo, são, segundo Arendt, a essência do totalitarismo. O terror efetivo é a noção de que a realidade concreta já não existe, e o real não se refere mais ao próprio real. O erro é impossível no totalitarismo, dado que o líder não pode fracassar.

Nasce o “cientificismo ideológico”, uma profecia futura cuja verificabilidade só pode ser atestada fora do presente, feito em nome de um esforço futuro, de um objetivo geral e objetivo. O cientificismo ideológico é o estágio final de um endeusamento da ciência por meio do realismo prático, tornando as “profecias” do líder verificáveis através da fabricação de evidências, da cortina de ferro e do revisionismo histórico, fortalecendo assim a noção de infalibilidade do líder. Portanto, os critérios de verdade são abalados em nome do desejo do líder; a fuga do real é a única alternativa frente ao terror, forçando a realidade à ficção de uma sociedade perfeita, uma “para-realidade” reforçada por pinceladas de verdade, dando força à ficção da propaganda totalitária. O regime totalitário, portanto, não forjou apenas uma nova sociedade calcada no terror, mas uma nova realidade constantemente alterada segundo a necessidade política. A ideia de uma constante ameaça dos países capitalistas e os “esforços de guerra” permitem atrocidades contra inocentes, sob a justificativa de que a intenção, opinião e expressão prejudicam os objetivos do regime e a expansão do movimento totalitário a nível mundial. Constitui-se um mundo incompreensível e em “perpétua ameaça”, tornando-se um fenômeno diário das massas a noção de uma constante ameaça. É uma forma de terror psicológico que surge no auge do regime e permite a plena efetividade da propaganda totalitária. Há uma liberdade cínica dos altos escalões em contradizer-se, tudo é visto em termos de “organização”. A instabilidade política torna-se, portanto, uma estratégia de governo. O terror não é direcionado à oposição como no autoritarismo, mas à massa e aos próprios quadros do partido.

Assassinatos, sequestros, impunidade e reforço da ideia de um poder absoluto, insinuações indiretas seguidas de assassinatos em massa contra “culpados” de “crimes objetivos”. A noção de crime objetivo surge sob o regime stalinista, onde não é necessário que um crime ocorra, mas que sua intenção prejudique o regime em um determinado contexto social e político “limite”. A própria população, diferentemente do imperialismo, é vista como uma população estrangeira a ser conquistada, como suspeita de um crime possível, logo, objetivo. É neste contexto que a polícia secreta demonstra seu poder, pela infiltração em múltiplos órgãos do Estado, o comissariado do povo, sindicatos e organizações trabalhistas, em resumo, quaisquer esferas onde exista algum resquício de poder. Torna-se, portanto, a esfera oculta do poder mas que o controla e que declara quem são os “inimigos objetivos” do partido. Por ter um corpus jurídico completamente errático, a definição e os limites do que constituem um crime objetivo são revistas continuamente, novas formas de traição são forjadas de acordo com a necessidade. Um exemplo foi o movimento formalista, aceito até determinado período na União Soviética, mas que foi expurgado como uma moda artística burguesa, tendo seus membros exilados ou mortos. O mais saudoso deles, Chklovski, escreveu um famoso livro descrevendo o processo revolucionário russo, às reviravoltas políticas da época e a vida no exílio: “Viagem Sentimental”. A liberdade de ideias, política e artística se vê ameaçada por uma forma jurídica em constante mudança, ao evitar definir o que são sujeitos e movimentos “perigosos”, o regime totalitário estabelece um relação de terror, dado que restringe o conhecimento ao que é ou não permitido. As punições, segundo Arendt, se dão não pelos supostos crimes dos indivíduos, mas de acordo com a necessidade de “renovação contínua” do poder, daí a lógica dos expurgos. Dessa forma, àqueles que assumem os cargos dos antigos “expurgados”, tornam-se cúmplices silenciosos do terror.

2.5 A Organização Totalitária e suas Instituições

Há uma duplicidade em todos os órgãos oficiais: o próprio estado é a forma aparente de poder, mas o partido é a instância real e decisória. Ocorre um “mistério do poder real”, nem os próprios membros do regime conhecem totalmente seus mistérios, amplificando a noção de uma organização irracional regada à multiplicação de órgãos, mecanismos de re-seleção e expurgo de membros, prisões, fuzilamentos e redistribuições de poder contínuos. O modus operandi da organização totalitária é o dinamismo, por meio de mudanças constantes em todas as esferas do Estado e a duplicidade, ocultando o poder à luz do dia. A noção de manter os hábitos do partido datados de sua atuação na clandestinidade parece paradoxal e o é: trata-se de esvaziar de sentido o método das sociedades secretas e transformá-lo em um clima conspiratório onde nenhum indivíduo está seguro, nem mesmo os quadros do partido. Ao contrário do que se pensa, a polícia secreta não é uma ferramenta, mas a classe dominante do regime totalitário, como exemplificado pela Gestapo, SS, NKVD e afins. Há uma hierarquia flutuante, segregada entre a vanguarda (massas), “restos da solidão absoluta”, e o partido de vanguarda, a ralé, representantes do desejo do líder.

É aqui que o “princípio da liderança” mostra sua centralidade, atribuindo uma responsabilidade total: os atos do movimento não só representam o líder, mas são seus atos. Há uma interiorização do desejo do líder, vendo-se o subordinado como um acólito do desejo do líder. Em caso de erro, trata-se de um impostor, que perpetuou uma fraude que não representa o líder. O erro é um fato político impossível e inaceitável para o regime totalitário que deve ser perfeito, mesmo que seja necessário recorrer à propaganda para manufaturar a realidade, dando a ela a aparência desejada. Há um conspiracionismo no método totalitário, “o segredo à luz do dia”, mantendo o método das sociedades secretas pré-existenciais na época de ilegalidade das pretensões do partido, esvaziando-o de sentido. Clima agravado pela cumplicidade silenciosa supracitada daqueles que se beneficiam dos expurgos realizados.

A instituição totalitária central, onde seu método é posto à prova, são os campos da concentração. Nele se formam as elites, adquirindo um senso de crueldade tão absurdo que passa a ser utilizado como ferramenta para a incredulidade. Havia uma sincera ingenuidade quanto aos horrores dos campos tanto na Alemanha quanto na URSS por boa parte da população. Como seria possível que alvos de uma propaganda tão massiva das boas qualidades do líder e do partido, acreditariam que seus “salvadores” são em verdade seus algozes? O isolamento do mundo acontece por meio de uma incredulidade cultivada no absurdo, o domínio total só é possível, segundo Arendt, graças aos campos de concentração. É neles onde não só a existência física de sujeitos é destruída, mas a sua memória, um apagamento em massa da identidade, de qualquer resquício que aquele sujeito tenha existido; de certa forma, na realidade totalitária, ele nunca existiu. São crimes tão terríveis e sem precedentes, que transformam não só a sociedade mas a natureza humana. São impuníveis e imperdoáveis pois são incompreensíveis ao ponto de romper o real. Surgem em um mundo onde o homem é supérfluo:

“O desprezo ideológico pelos fatos ainda continha o pressuposto do homem sobre o mundo, é o desprezo à realidade que faz possível mudar o mundo.” Ibid, ibid, p. 206.

2.6 Síntese

Uma boa oportunidade de retomar o conteúdo da seção sobre totalitarismo é o capítulo “Ideologia e Terror”. Nele a autora sintetiza o projeto totalitário:

  • Destruição e desprezo das tradições sociais, jurídicas e políticas.
  • Conversão da sociedade de classes em uma sociedade de massas.
  • Sistema partidário controlado pelo movimento de massas.
  • Centro de poder político móvel e secreto.
  • Ruptura com o conceito de legalidade e de verdade.
  • Estabelecimento de Leis ideológicas que legitimam os crimes do partido e do movimento.

Neste capítulo a autora também estabelece três elementos do pensamento ideológico característico do regime:

  • Explicação total (passado, presente, futuro).
  • A noção de um real mais real, mais verdadeiro, acessível somente pelo pensamento ideológico.
  • O corte da capacidade de experimentar o real por meio do axioma aceito como premissa, uma compulsão dialética que estabelece uma força auto coercitiva da lógica.

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Guilherme Paiva Seidel

Escrevinhador tardio nas horas inúteis. De Tudo um Pouco. Путь заслуг болезнен